Os animais e os conceitos
Depois de um período em que outras obrigações não permitiram efectuar novas postagens, propomos a reflexão sobre um assunto porventura marginal. Ou talvez não...
OS ANIMAIS SÃO CAPAZES DE LIDAR COM CONCEITOS?
Alguns Contributos para a luta contra a presunção do Hominídeo
Para a maioria das pessoas, é inadmissível que os animais não humanos (aves, mamíferos, etc.) consigam manipular conceitos. Para a maioria das pessoas, o “conceito” é um objecto exclusivo da mente humana. Mesmo muitos psicólogos não admitem a possibilidade de animais não humanos poderem elaborar e manipular conceitos – aliás a maioria até desconhece as experiências que demonstram essa possibilidade.
Só a experimentação científica poderá esclarecer esta questão. Para esse efeito, a primeira etapa consiste em definir claramente o que se entende por “conceito”.
Quer do ponto de vista da filosofia, quer do ponto de vista da psicologia cognitiva, um conceito implica uma generalização dentre de classes e entre classes. É esta generalização “dentro” (within) e “entre” (among) que distingue um conceito de uma categoria. Transpondo esta caracterização de um conceito para a psicologia experimental, diz-se que um ser vivo exibe comportamento conceptual se responde similarmente a velhos e a novos elementos de uma classe de estímulos e se responde diferentemente a velhos e novos elementos de outra classe de estímulos.
Tendo em conta esta definição operacional, Herrnstein e colaboradores, em 1976, treinaram pombos a discriminar slides de árvores (S+s) de slides de não-árvores (S-s), num total de 700 slides, pressionando teclas dispensadoras de comida para os slides com árvores e não pressionando nas teclas dispensadoras de comida para os slides sem árvores. Descobriu que estas mesmas aves foram capazes de discriminar árvores de não-árvores numa série completamente nova de 800 slides. Isto é, os pombos foram capazes de realizar uma tarefa que respeita os critérios da supracitada definição operacional. Esta experiência inaugural deu início a uma série de experiências sobre pensamento conceptual em aves e outros animais que ainda hoje se realizam.
Por exemplo, no Journal of Experimental Psychology, de 1988 (pp. 219-234) é relatada a experiência de Bhatt, Wasserman, Reynolds e Knaus, em que os investigadores usaram uma nova metodologia para estudar a aprendizagem conceptual em animais. A mais importante diferença em relação à experiência da equipa de Herrnstein é que aquela requer que os animais aprendam mais do que um conceito em simultâneo. Usaram um écran quadrado grande no qual projectavam slides coloridos. Em cada um dos quatro cantos do écran há uma tecla, cada uma associada a um conceito diferente: flores, cadeiras, carros e pessoas (cf. Figura 2).
Os investigadores usaram dois grupos experimentais: um grupo de ensaios não repetidos (ENR) e um grupo de ensaios repetidos (ER). No grupo de ensaios não repetidos, os animais (4 pombos) nunca viam um mesmo slide mais do que uma vez. No grupo de ensaios repetidos, eram usados sempre os mesmos slides relativos a cada um dos quatro conceitos. No grupo de ensaios não repetidos, foram usados nas experiências 2000 slides, 500 para cada uma das 4 categorias (flores, cadeiras, carros e pessoas). Em cada 50 dias, cada pombo era treinado com 40 slides, 10 de cada categoria.
Como se pode constatar nos gráficos da figura 3, em ambas as condições de treino os pombos realizaram discriminações com êxito, embora os procedimentos de repetição resultassem em melhores desempenhos. Ambas as condições geraram efeitos que se distinguem de modo altamente significativo do esperado pelo acaso. Não houve diferenças estatisticamente significativas na eficácia discriminativa entre os quatro conceitos.
Os “teimosos” poderão argumentar que os pombos realizaram estas operações graças unicamente à memória. Para testar esta hipótese, Wasserman, Kiedinger e Bhatt (pp. 235-245 do mesmo jornal) comparam a tarefa de classificação por categoria natural com a classificação por pseudo-categoria. As pseudo-categorias eram feitas aleatoriamente com exemplares das quatro categorias naturais usadas: flores, cadeiras, carros e pessoas. Para aprenderem a usar as pseudo-categorias os pombos teriam de recorrer exclusivamente à memorização dos exemplares incluídos nas classes.
Como é mais difícil memorizar exemplares um a um do que aprender conceitos que descrevem todos os possíveis exemplares, esperar-se-ia que não houvesse diferenças de desempenho nos pombos nas duas situações experimentais no caso de a hipótese de recurso exclusivo à memória estar correcta.
Para os ensaios com categorias naturais usaram uma tecla para cada conceito: 20 gatos, 20 flores, 20 carros e 20 cadeiras. Para os ensaios com pseudo-categorias, cada tecla era associada a categorias constituídas aleatoriamente por 5 gatos, 5 flores, 5 carros e 5 cadeiras.
Os resultados não confirmam a hipótese dos “teimosos” (cf. Figura 4).
O gráfico mostra claramente que os pombos têm melhor desempenho com conceitos naturais do que com pseudo-categorias que têm de memorizar. Estes resultados têm sido encontrados em experiências semelhantes com outras espécies.
Por exemplo, a maioria das pessoas desconhece que pombos treinados a distinguir pinturas de Picasso (cubista) de pinturas de Monet (impressionista) conseguem, posteriormente, distinguir outras pinturas cubistas (ex.: Braque) de outras pinturas impressionistas (ex.: Cezanne) sem qualquer treino adicional. Também distinguem peças de música clássica.
Em suma, os animais não humanos conseguem mais do que os humanos admitem. A psicologia do comportamento animal é um domínio científico fascinante que, infelizmente, é descurado na maior parte das escolas de formação em psicologia. Em Portugal, onde há mais de 30 escolas de formação de psicólogos, entre universidades públicas e privadas, apenas na Universidade do Minho e no ISPA há projectos de investigação e laboratórios de psicologia animal.
A psicologia animal ensina-nos mais acerca dos humanos do que as correntes convencionais de carácter ideográfico – lírico-narrativo, para além de que combate a virulenta presunção de hominídeo que muito tem alimentado o desrespeito pelos animais a coberto de uma defesa piedosa e pouco eficaz.